Crónica de distintos oureenses

Guia de leitura do Ourém blog destinado a celebrar a juventude de um grupo de oureenses e o espaço onde a mesma teve lugar

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Localização: Portugal

Meio comuna, meio anarca, com hábitos burgueses. Totalmente confuso na selva capitalista...

sábado, junho 26, 2004

Crónica de distintos oureenses

A Abrir: Distintos Oureenses
Capítulo I - Foi em Ourém
Capítulo II - A minha relação com a imprensa de Ourém
Capítulo III - Eu, distintos oureenses e o 25 de Abril
Capítulo IV - Andam a destruir a nossa Ourém
Capítulo V - Recordar é viver, Resistir é vencer
A Fechar: Cinzas de mim







A Abrir: Distintos Oureenses

Conheceram-me pouco depois de ter aparecido neste mundo. Jogámos à bola no magnífico Largo de Castela e na feira do mês. Disputámos corridas bem cronometradas no interior do belíssimo jardim junto da Câmara, já desaparecido. Esfolaram-me e foram esfolados ao King no Avenida e no Parque da vila. Enfrentaram-me ao bilhar no Central e no Grémio do Comércio. Tal como eu, esperaram pelo Mundo de Aventuras e pelo Condor Popular e, se eram bem comportados, chegaram a ler o Cavaleiro Andante.
Tiveram o privilégio de ouvir os Animals, os Beatles, os Stones, os Bee Gees e os Moody Blues exactamente no momento em que as suas músicas surgiram. Acompanharam-me para quebrar a solidão nas noites de Ourém onde o maior ruído era o que provinha dos Mééé de inocentes carneirinhos ali para os lados da casa do sr. Lúcio.
Um deles, mesmo sem alguma vez conversarmos, teve influência decisiva na formação do meu pensamento. Elaborou cadernos de Política Económica Economia Política. Escreveu O que é o Mercado Comum que li com sofreguidão. O mesmo interesse manteve-se em O que é o Comecom. Colaborou no Notícias da Amadora com o Carvalhas, o Blasco, o Eugénio, quando escrever era um exercício de risco e aquele jornal formava com o Comércio do Funchal e o Jornal do Centro um bloco fortíssimo na ataque à ditadura e suas manifestações.
São estes os distintos oureenses. Distintos porque, por qualquer acção, ultrapassarm o limiar da indiferença na minha perspectiva. É deles que, muitas vezes, falo, é para eles que, muitas vezes, escrevo. É isso o que acontecerá em próximos posts.

Capítulo I - Foi em Ourém

É verdade, meus amigos.
Tudo o que vou relatar passou-se em Ourém entre meados da década de cinquenta e meados da década de sessenta. Está aqui a minha história que, em parte, é a vossa história.
Alguma ausência de rigor que possa ser encontrada é, sem dúvida, devida à força do esquecimento que o passado vai deformando.
Mas estou disposto a qualquer correcção que tenham a bondade de me enviar.
E, se quiserem contribuir, há sempre hipótese de esta crónica crescer com a adição das vossas recordações.
Para já, ficam aqui com:
O encontro anual
O piromaní­aco
A mão enorme
Leitaria Guerra
Onde estará?
Bem feito
A seita do cavalo branco
O mata-borrão
Pi-Pi
A mudança
A casa da rua de Santa Teresinha
Uma chegada imponente
Descobrir filões no meio da confusão musical
Alcunhas oureenses
O tiro saiu pela culatra I
O tiro saiu pela culatra II ou... é preciso repor a verdade histórica
Uma história de amor
Dar a cara
A equipa maravilha
Bufos
Ourém, uma ferida
Marx em Ourém

O encontro anual

1945.
Faltavam três anos para poder nascer e ainda não estava decidido onde iria ser a próxima passagem. Uns anos atrás, Kripton tinha explodido e os seus dirigentes enviaram uma nave para a Terra onde o seu filho foi bem acolhido. Esta era assim uma hipótese, mas estava em guerra o que não me agradava nada. Por essa altura o do bigode curto e braço estendido combinava uma saída airosa com a secretária para não enfrentar o veredicto da humanidade. É neste contexto que deparo com o que o pai de um distinto oureense escreveu no Notícias de Ourém e era mais ou menos assim:

"numa terra da América, um grupo de amigos reunia-se todos os anos num almoço, mas a morte fora-os levando um a um até que ficou apenas o último que, no entanto, continuou a almoçar no mesmo dia e no mesmo sítio em que se juntava com os amigos para perpetuar a paz e a estima que deveria existir entre os homens... se todos os ourienses deixarem de cumprir o seu dever, não comparecendo ao nosso almoço anual virei eu aqui ou a outro sítio, todos os anos, e almoçarei sozinho, pensando em vocês e na minha terra!"
Fiquei decidido. Viria para a Terra, mais propriamente para Ourém, terra do vinho palheto e do carneiro com batatas onde grupos de amigos privilegiavam os encontros anuais bem regados e comidos.

O piromaníaco

Recordo Ourém, há cinquenta anos, talvez lá para 1953/54 ou mesmo antes.
Desfrutava a magnífica casa do Largo de Castela.
A partir daquela janela sobre a porta de entrada, dominava todo o espaço circundante. Em frente, a rua que conduz à avenida. Mais ou menos a cinquenta metros, ficava a casa da Vizinha e do Rafael. Ela era uma espécie de terceira mãe sempre pronta a proteger-me em momentos difíeis, ele um verdadeiro avôzinho que me levava a passear pelos pinhais e até ao rio para que, de lingrinhas, ultraleve e doentio, me transformasse em alguém forte e saudável.
Mais abaixo, a casa do Luís Nuno e do Zé Rito à frente da qual ficavam os quintais onde o sr. Isidro guardava as galinhas que transacionava. Ao fundo e, já a dar para a avenida, o estabelecimento comercial do sr. Adelino e, do outro lado da rua, um sítio onde me lembro que se comprava carvão.
O largo de Castela, famoso pelas formidáveis partidas de futebol que possibilitava, era rodeado por mais duas casas relativamente habitáveis e por outra em piores condições. À direita, era a padaria da Júlia padeira e do sr. Zé Maria, avós do Fernando e do João, dois miúdos ultra-arreliadores primos do Quim e do Julito. Ela era a fornecedora do magnífico pão que podíamos saborear na época; do lado esquerdo era a casa da Dona Aurora, mãe da Aurorita que me ensinou as primeiras letras e números.
Em frente à padaria e do outro lado da rua, numa casa que penso que ainda lá está, o Souto dedicava-se ao trabalho artesanal de construir jaulas em madeira, cortando pacientemente pequenos pausinhos e descacando-os com uma navalha para depois os assemblar em estruturas mais complexas. Eu passava horas e horas a contemplar esse trabalho, embevecido e sem pensar nos pobres animais que iam ali ser guardados e torturados.
Por vezes, o espectáculo a partir da casa era mais animado. Se não estou em erro, regularmente, pelo dia três, realizava-se a feira do mês no largo junto à escola da Dona Iria, perto da prisão da GNR. E a rua de Castela enchia-se das mais diversas espécies de animais - ovelhas, carneiros, cabritos, burros, vacas, mulas - que a desciam para se dirigirem ao largo da feira onde eram transacionados. O ruído dos chocalhos, a mistura dos sons produzidos pelos animais e pelas pessoas que os controlavam, o seu tropel eram magníficos dando a tudo aquilo uma sensação que de semelhante só se encontrava nos filmes do Oeste com as cavalgadas junto aos bisontes ou a manadas de gado tresmalhadas. Eu abria a porta e via todo aquele ondulado barulhento a passar. Depois era de novo o silêncio, a rua ficava um pouco suja com excrementos do tipo azeitona e, no mês seguinte, lá se repetia a história.
Mas o objectivo do nosso post de hoje é a casa do largo de Castela.
Vamos até lá e entremos.
Logo do lado direito, uma escada conduzia-nos à parte superior da casa. Subindo-a, há que fazer um ângulo de noventa graus à esquerda para termos acesso às várias divisões.
À direita, existia uma casa de banho com um anexo que, com uma escada, permitia o acesso ao sótão.
Em frente, era o quarto do meu irmão. Lembro-me que ele tinha uma cama de metal toda bonita, uma mesa de cabeceira onde religiosamente guardava a colecção do Mundo de Aventuras que eu, com a mania de tudo ler, e, aproveitando uma possibilidade de acesso retirando a gaveta superior, contribuí para destruir e uma pequena estante com um rádio onde, na época, se ouviam delícias como os folhetins do Tide e do Omo, adaptados por Alice Ogando e cujo começo era mais ou menos assim:

Teatro Tide apresenta.... a gata...
Do lado esquerdo era o meu quarto, do qual tenho a primeira recordação desta minha passagem por este efémero planeta, onde tive a honra de conhecer os meus excelsos amigos, e que se resume simplesmente a isto: um acordar, sentindo qualquer coisa junto aos dedos que se ia desfazendo e que era, afinal, a parede do quarto que eu riscava com as unhas. Ao lado, era o quarto dos meus pais.
Na parte de baixo, a casa tinha menos divisões devido ao espaço que a monumental escada ocupava. Assim do lado esquerdo, tinha uma verdadeira sala de jantar, onde a minha mãe, à quinta-feira, escondia as tangerinas que eu depois me entretinha a procurar para meu exclusivo proveito.
Em frente, era a cozinha que tinha uma despensa relativamente grande. Na altura, ainda não tínhamos fogão a gaz, pelo que o fogareiro de petróleo e aquele fogareiro a carvão do tipo que se utiliza quando fazemos grelhados nas praias eram os mais usados. Assim, em minha casa, na despensa, havia sempre caruma e carvão. E um dia a contemplação daquela caruma deu-me uma brilhante ideia.
Estava sózinho na parte de baixo, ouvia-se o Tony de Matos
:
O vendaval passou, nada mais resta...
e eu, pé ante pé, vou até à cozinha para me apoderar dos fósforos, dirigindo-me posteriormente para a despensa. Risquei o primeiro fósforo e, depois de aceso, atirei-o para cima das carumas.
Frustrado, vi que se apagou no ar, pelo que pensei logo em repetir a operação. Como não era muito corajoso, não me aproximei suficientemente e o resultado era sempre o mesmo: fumaça e algum cheiro...
E estava eu todo entretido nesta operação que, mais tarde, me lembraria o que possibilitou aquela cena de Nero a contemplar Roma, quando oiço a voz da minha mãe:
- Oh Luís! O que é que estás tu a fazer?
Gelei, fiquei paralizado. Só me ocorreu uma resposta:
- era para ouvir a sirene dos bombeiros...
Não sei se a a sova foi grande ou pequena, sei que deu para fugir de casa, ir até à casa da Vizinha, para me acolher à sua quase maternal protecção, dar umas voltas a fugir em torno da cama, enquanto a minha mãe, ainda relativamente jovem, me perseguia com algo na mão e que eu não queria que me fizesse chegar a roupa ao pelo.
A Vizinha, sempre conciliadora, lá conseguiu acalmá-la e o caso ficou por aqui depois de eu fazer mil promessas de que nunca mais repetiria tão valente feito.

A mão enorme

Desloco-me do Largo de Castela na direcção da Câmara no meu carrinho de madeira novinho em folha. Trata-se de um pau tipo cabo de vassoura atravessado ao meio por um pequeno bocado de madeira e terminado numa extremidade por uma roda com uns vinte centímetros de diâmetro que funciona em torno de um eixo que atravessa o pau. Frente à prisão da GNR saúdo o simpático prisioneiro que teve a amabilidade de me oferecer aquilo que era produto da sua tentativa de passar o tempo o mais depressa possível. Como é possível pessoa tão boa estar ali dentro, atrás daquelas grades?
Chego junto à Câmara e sigo por trás, mais à frente viro à esquerda e continuo. Começo a ouvir o som que vem da escola do Roque daqueles que decoram tabuada:

um vezes um, um
um vezes dois, dois
um vezes três, três…
Fujo dali. Ena! Que coisa difícil.
Frente à porta principal da Câmara, viro na direcção da escada para o jardim que desço. Faço duas voltas em torno dele a uma velocidade razoável experimentando a suspensão e os travões. Tudo era magnífico, não fosse um carrinho novo em folha. Saio do jardim pelo lado direito de quem sobe e continuo a subir.
Perto da tesouraria algo chama a minha atenção no chão. Beatas de cigarro, centenas delas. Das mais diversas. Com filtro e sem filtro, grandes e pequenas. Naturalmente, isso dá-me uma excelente ideia. E, no dia seguinte, ali volto já sem o carrinho e com uma caixa de papelão na qual guardo cuidadosamente os melhores exemplares que transporto para casa.
Já em casa, na cozinha, desfaço cada um dos elementos recolhidos, liberto-me do papel e dos filtros e guardo os restos de tabaco. Tinha um móvel com várias prateleiras numa das quais uma abertura maior permitia que dois cântaros de barro guardassem e purificassem a água que bebíamos. Outra estava coberta com um bocadinho de pano e foi essa que escolhi para proteger o resultado do meu trabalho de olhares indiscretos. Esta operação foi repetida durante vários dias.

Estávamos todos a jantar na casa do largo de Castela. No final do delicioso repasto, o meu pai puxa de um Português Suave e goza aquele momento de repouso. Eu senti que podia mostrar-me ao seu nível. Fui buscar uma folha de papel, fui buscar bocadinhos de tabaco. Ele contemplava não sei se incrédulo, não sei se a observar até onde ia o meu descaramento.
Acendo o cigarro entretanto feito, tiro a primeira fumaça e envio-a para o ar sem engolir. Fico a contemplar aquela magnífica espiral enquanto aprecio o odor. De repente, no tecto aparece como que uma mão que desce na minha direcção. Não, meus amigos, não era a mão invisível do Adam Smith que aparecia ali para regular o mercado. Aquela era bem torneada, definida, enorme no sentido do comprimento e, se pretendia regular alguma coisa, era o meu comportamento. Tal mão parecia calejada de trabalho no campo, de anos de condução e se calhar de mecânica de automóveis. Era esquelética, mas enorme e a sua velocidade incrível. Sentado na cadeira, tento recuar, aterrorizado, mas a cadeira não deixava, fixava-se-me nas costas. Até que aquilo cai sobre mim com monumental estardalhaço.
Durante mais de uma dezena de anos não pequei num cigarro, até que distinto oureense, em Leiria, numa esplanada da praça Rodrigues Lobo me exorcizou de tão funesto receio.

Leitaria Guerra

Ourém, anos 50, praça de automóveis.
Estou no meio daquele jardim que já é uma saudade. Ali existiam toda a espécie de árvores, arbustos e flores, respirava-se vegetação. Ao centro, os banquinhos de madeira permitiam que as pessoas descansassem por um bocado.
Em torno da praça estavam os automóveis de aluguer. O Cabeça Aguda, o Chucha, o Alicate, o Flores, o Zé Vieira.
Eu e o meu irmão encontrámo-nos ali com o meu pai e decidimos ir até aquela minúscula leitaria que, para mim, com quatro ou cinco anos era um mundo.
Sentámo-nos e eles mandaram vir leitão e palhete. Perceberam? Leitão e palhete no centro de Ourém.
Olharam para mim.
- Que é que tu queres?
Como aquelas comidas e bebidas me faziam alguma confusão, achei que o ideal era tomar qualquer coisa que estivesse de acordo com o meu estatuto.
- Um garoto.
E lá veio aquela maravilha num daqueles copinhos da época.
Entretanto, eles encarregavam-se do magnífico leitão do Guerra. O meu irmão rapa da navalhita que o acompanha sempre e passa a parti-lo em pequenos pedaços que depois ia picando descansadamente e levando à boca. O meu pai era mais directo, pegava em conjuntos daquelas peles bem tostadas e carne e deleitava-se. Depois a tacinha compunha o petisco. Como tudo aquilo parecia delicioso, o leitão, o tempero, o pão, o palhete…
Falaram de desporto.
- Sabe, pai, este ano o Sporting vai ganhar o campeonato.
- Espero bem que sim, ninguém se pode comparar a eles.
Mas vendo que havia alguém estranho a ouvi-los, viram-se para mim:
- És Sporting ou Benfica?
Nunca fui uma pessoa agradável e, depois de os estar a ver deleitar-se com o Leitão, deixando-me com uma simples bebida embora deliciosa, achei que devia marcar a minha posição:
- Benfica!
E fiquei benfiquista para toda a vida. Aquela cor vermelha sempre exerceu um enorme fascínio sobre a minha pessoa pelo que julguei ter sido a opção certa. Aliás, uma coisa que nunca percebi muito bem terá sido a grande quantidade de adeptos sportinguistas que havia em Ourém na altura. Parecia que já, na época, não gostavam de vermelho.
- Não tens vergonha? Devias ser do Sporting como todos somos.
- O Benfica ainda há-de ganhar a Europa.
- Ganhar a Europa? Há-de ir tanto à Europa como o outro há-de cair da cadeira, não é, pai?
- O Sporting vai ser campeão para a eternidade. É tão certo ser eterno campeão como aquele jardim que está ali fora. E, se isso não acontecer, será por causa do sistema.
- Cuidado, pai, algo me diz que já nasceram os que se perfilam como ameaças alaranjadas a esse jardim.
- Que é que tu dizes? Deve ser do palhete que já não me está a deixar ouvir bem. Fica sabendo duma coisa. Esse jardim que nós ajudámos a construir, só será destruído se os gajos da tua geração não tiverem vergonha e deixarem a terra abandonada aos que aí à volta se preparam para tomar conta dela.
E, como sempre, o meu pai tinha razão. O pessoal da minha geração, do qual não me excluo, não teve vergonha.

Onde estará?

O cãozito vinha todo contente dos lados da casa do Ferraz. Entra no Largo de Castela e fita-nos desafiador enquanto jogávamos futebol. Senta-se, levanta a perna e procura parasitas. Mais tranquilo corre atrás da bola e até parece um excelente esquerdino.
De repente, vindos não sei de onde, surgem quatro homens com redes às costas. Dispõem-se rapidamente à volta do largo e aproximam-se do bicho. Ele vê-os e percebe logo a sua triste sorte. Tenta fugir pela rua de Castela, mas um dá um passo em frente e tapa-lhe o caminho. Volta para trás, mas os outros avançaram e tem todas as direcções barradas. Impotente, cai na rede e desata a latir.
Os homens riem-se perante a nossa revolta.
- Que se passa? Por que fazem isto?
Todos os protesto foram em vão.
Nunca mais o vimos.

Bem feito

Ourém, Colégio Fernão Lopes. Tínhamos talvez oito, nove anos. Concentrávamo-nos na parte da frente do colégio já não me lembro porquê. Algum encontro com alguns professores.
De repente aparece ele, no seu Volkswagen tipo carocha novinho em folha, conduzido pelo pai. Olha-nos com desprezo do alto da sua fortuna. Tudo nele era horroroso, embirrante, nem sei como o classifiquei como distinto oureense. Deve ter mudado muito depois disso.
Olha para nós, cabisbaixos, tristes, tesos que nem carapaus.
- Anjinhos!!!!
O pai acelera o carro para se afastar. Mas eis que coordena mal a condução e o carro vai abaixo. Foi gargalhada geral.

A seita do cavalo branco

Não sei quantas vezes vi este saudoso filme no cine-teatro da vila, uma magnífica sala onde as plateias (de primeira e segunda), a geral, os camarotes e o balcão reflectiam a estratificação social que se vivia.
Mas, em momento de filme, corridas aquelas belas cortinas verdes que tapavam as portas de saída, tudo isso de esbatia. Detentor de pouco dinheiro, geralmente utilizava aquela plateia quase colada à geral e daí podia assistir à magnífica cavalgada para apanhar os bandidos no momento chave em que o espectador se tornava actor.
A galopada e o seu ruído entravam pela sala dentro. Toda a gente gritava de entusiasmo e saltava nas cadeiras. Sentia-se todo o edifício a tremer pelo arrebatamento desordenado que lhe era transmitido por quem se julgava a viver a monumental perseguição. Finalmente, os bandidos eram capturados.
No dia seguinte, menos tensos, com mais uma boa dose de paliativo para aceitarem a situação social em que viviam, todos comentavam o esplendor do espectáculo e todos pretendiam ter sido aquela figura que, no final, planeava passar o resto dos seus dias com a bela menina que amenizava tão brutais costumes.

O mata-borrão

Em Ourém, havia uma escola para rapazes e outra para meninas, respectivamente a escola do Roque e a escola da Dona Iria. Mas no CFL tive o privilégio de encontrar turmas mistas o que permitia aos mais abonados (?) uma educação mais equilibrada do que a reservada aos outros.
Ali, a filha do poeta podia encontrar-se com o filho do plebeu e, não fosse a separação nos recreios, que podia muito bem ser contrariada pelo reencontro no pinhal, poder-se-ia dizer que viviamos num mundo onde não existia segregação. Com efeito, as traseiras do colégio eram reservadas aos rapazes que aproveitavam a parte de trás do ginásio para experimentar os primeiros cigarros. A parte da frente, a das flores, era para as meninas que podiam aí gozar a simpática companhia dos professores que, nos intervalos, passeavam na estrada para baixo e para cima.
De repente, o toque da campainha, desencadeado pelo Sr. Nunes fazia com que todos voltassem para as salas de aula e para os corredores.
Todos?
Lembro-me de uma certa história protagonizada pelo Augusto Almeida e pelo Vitor Castanheira que acabou mal. Por causa do mata-borrão, desdenhosamente apelidado de chupa o que causou manifestação de estranheza pelos ditos, foram postos na rua com a indicação de que só lhes seria permitida a entrada após o pedido de desculpas. Eles é que não estiveram pelos ajustes: como não lhes era permitida a entrada, ficaram pelo recreio, não fosse aquele o melhor sítio para se estar. E os dias foram passando. Imaginem a satisfação do Augusto e do Vítor enquanto nós penávamos nas aulas...
Um dia, estávamos todos descansados na aula, quando, repentinamente, a porta se abre com estrondo, entram o Augusto e o Vítor em voo e, atrás deles, o Dr. Armando, esbaforido, muito vermelho, praguejante, que lhes pregou uma monumental sova à nossa frente e os obrigou a pedir desculpa pelo vil acto que tinham praticado com o mata-borrão.
Não contente com isso, conduziu-os aos lugares onde os fez sentar, fez menção de se retirar e, quando nós nos levantámos para saudar a sua saída, espetou mais uma ou duas bofetadas no Oliveira que, nesse dia, teve o azar de estar no local errado.

Pi-Pi

Voltemos ao CFL.
Vamos falar de uma professora que nos deixou uma deliciosa recordação nos dois ou três anos que precederam o formidável calhambeque do Roberto Carlos.
Residente no centro de Ourém, utilizava um carrinho verde, julgo, para se deslocar para o colégio. A velocidade era moderada, dava a sensação que nunca ultrapassava os 20km/h e que não passava da segunda velocidade. De dez em dez metros, anunciava a sua presença com fortes buzinadelas para afastar algum incauto transeunte ou algum cãozito que, vendo o seu andamento, se atrevia a desafiá-la para uma corrida até à curva junto à casa do Zé Canoa.
Ensinava (e bem) Físico-Químicas, Botânica e Ciências Naturais. Foi nesta última matéria que consegui pela primeira vez a classificação máxima num teste, que durante anos tinha perseguido infrutiferamente. Tratava-se daquele tema em que se estudavam os mamíferos, as aves e aquelas ordens todas que o esquecimento já levou.
E quando o ambiente na magnífica sala do CFL era de todo insuportável devido a efervescência desobediente dos alunos que mereceria muito mais do que um valente abanão, ouvia-se a sua voz, com um misto de carinho e repreensão, numa frase que, neste momento, todos os que a conheceram decerto recordam:
- Que coisa! Vocês são de uma impertinência única.

A mudança

Já não me lembro em que ano mudei para a casa da Rua Santa Teresinha.
Mas sei que fui actor nessa cena.
E revejo-me a descer do largo de Castela para a Avenida. Levo um saco grande na mão, talvez com um metro de altura e uns trinta centímetros de diâmetro. É castanho, feito de uma matéria que me parece linhaça, mas que a minha santa ignorância não consegue caracterizar. Lá dentro sente-se que algo mexe. É a minha gatinha de cor branca e preta, vai dentro do saco para não reconhecer o caminho e não ter tentações de voltar à origem.
Atravesso a Avenida e viro à esquerda, frente ao edifício do cine-teatro viro à direita e inicio a descida. Passo em frente à casa onde conheci distinto oureense que há uns dois anos me ofertou saboroso arroz de cabidela na Gondemaria. Um pouco mais abaixo, frente à morgue, acelero o passo, sempre que ali passava tinha receio que algum defunto me perseguisse. Num instante chego à estrada, passo frente à alfaiataria do Zé Canoa e inicio o pequeno morro que me leva à nova casinha.
Ali, faço as apresentações à gatinha. Vê o quintal, vê os quartos, enfim tudo parece em ordem, a adaptação parece não trazer problemas.
Passa um ou dois dias. Oiço a minha mãe: Luís, não sei da gata...
Foi o desespero. E se ela era engraçada e brincalhona.
Mas eis que chega a salvação. Alguém da rua de Castela traz a notícia. Sabem, a V. gata não sai de ao pé da antiga casa.
É verdade, apesar da nossa tentativa, o bicho tinha conseguido reconhecer o caminho e voltar. Com maiores cuidados, fomos buscá-la e, como o sítio para onde mudámos, era idílico, ela acabou por se adaptar.
Foram precisos muitos anos para distinto oureense compreender, aceitar e acabar por sentir esta fixação na casa do Largo de Castela.

A casa da rua de Santa Teresinha

Curiosamente, a adaptação à nova casa não foi difícil. Há com certeza explicação lógica para isso. Conhecia-a desde que tinha nascido, pois antes habitavam lá uns tios e ela, a tia, foi a minha segunda mãe. Pessoas boas, muito amigas, que me trataram sempre o melhor possível. Lembro-me que até tinha um quarto especial onde podia pernoitar quando não me apetecia regressar a Castela.
Os tios tinham vários atractivos: um bastante importante foi a colecção do Cavaleiro Andante que me ofereceram quase desde o início e que eu suspendi a uns trinta números do final. Outros eram os brinquedos. Recordo com especial carinho uma corneta que me foi oferecida pela Feira Nova e que eu usava mal acordava a imaginar que estava nos exércitos do General Custer em momento de ataque ao Sitting Bull. O toque era tão elevado, lancinante e apelativo que toda a gente acordava e tinha que formar. Não sei porquê, um dia a corneta desapareceu e, apesar da bondade deles, nunca consegui a substituição em termos realmente satisfatórios.
Mas não foi esse o único motivo de adaptação fácil. É que, em férias, tinha a boa companhia do Rui e ainda me lembro do Jó Rodrigues quando morava na casa onde hoje habita o Sr. Paisana. Para completar a quadrilha, havia ainda o Zé Quim à frente. Nisto tudo pode ter havido algum desfasamento temporal que terá feito que nunca estivéssemos os quatro.
Chegar dali ao Central e ao Avenida era relativamente fácil. Visitar a casa do Largo de Castela também era possível pois foi habitada pela Aurorita e pelo João Honório bons amigos que mais tarde vim a reencontrar em Leiria.
E foi a nova casa que um dia demonstrou que a minha fé num ser humano é imensa.
Como consta da lenda, as portas estavam sempre abertas ou nos trincos. Nesse dia, a minha mãe estava para o quintal. Eu lia qualquer coisa quando ouvi um certo ruído, um ruído baixo que não cessava, mas que também se não definia. Vim até à porta da rua e apareceu-me uma mulher que eu nunca tinha visto, mas que já tinha aberto a porta por completo e iniciado o processo de entrada.
- A senhora precisa de alguma coisa?
Ela ficou embasbacada, mas ripostou:
- Não é aqui que mora a Maria?
- Ah! Eu vou chamar…
E deixei-a em paz, fui chamar a minha mãe a quem contei o sucedido.
- Mãe, está uma senhora à procura da Maria…
Viemos até à entrada. Claro que já lá não estava ninguém. Em vão a procurámos até à zona do hospital.
Não sei se o prejuízo foi grande ou pequeno - como não era materialista, isso não me preocupava muito. Sei que ouvi das boas por acreditar tão facilmente nas nobres intenções do ser humano.

Uma chegada imponente

Esplanada do Avenida
Uma daquelas magníficas tardes de Ourém. Algum Sol. Com nada para fazer, distintos oureenses apenas podiam exercitar a contemplação. Para a esquerda, para direita… para a esquerda, para a direita…
O Jó Alho dava espectáculo. Corria de um lado para o outro, saltava batendo os calcanhares, enquanto trauteava o "La plus belle pour aller dancer".
De súbito, o belo carro negro aparece vindo talvez dos lados do Olival. Não sei se era um Ford Perfect da década de sessenta, era qualquer coisa assim. Algo de importante.
O carro detém-se junto aos correios. Saem algumas pessoas. Reparo especialmente nela, uma catraia com os seus catorze anos, alta, engraçada, não era bonita, era apenas engraçada. Depois em alguém que parecia o seu pai. Um ar aristocrático, uma espécie de barão em fato negro completo, bigode forte e farfalhudo, um indivíduo alto e encorpado. Pouco falaram, cada um foi fazer o que tinha a fazer. Passado algum tempo, voltaram todos, meteram-se no carro e arrancaram, abandonando Ourém. Não falaram a ninguém. Lembro-me que isto aconteceu várias vezes. Quem seriam?
Voltei a encontrá-la em Leiria no Liceu. Afinal era simpática, não muito faladora, mas cumprimentava sempre, o que para mim é qualidade elevada. Eu ia para Económicas, ela para Direito ou Germânicas ou Filosofia, por isso nunca mais a vi.
Mas nunca consegui esquecer o modo como chegavam a Ourém.

Descobrir filões no meio da confusão musical

O Jó Rodrigues possuia algumas magníficas qualidades. A sua simpatia, a sua alegria faziam com que a sua visita a minha casa, num pequeno morro na rua Santa Teresinha, frente à do ZéQuim e ao lado da dos padrinhos do Rui Temido, fosse sempre muito bem acolhida pelos mais velhos.
Entre essas qualidades, destaco a que se referia ao seu sentido de audição musical: ele conseguia descobrir no meio das músicas, escondidas sob as vozes, os solos, as baterias, pequenas pérolas que, sem o seu apoio, a nós, sempre com um ouvido para o mais comercial com certeza escapariam. Era um autêntico songs mining. Isto fazia com que, muitas vezes, conseguisse transformar uma canção insuportável em algo em que nós abstraíamos daquelas partes fastidiosas para esperarmos pacientemente pela passagem maravilha.
Parece-me que estou a vê-lo. Um dia entra pela minha casa, sem bater como era nosso apanágio, sentamo-nos na sala interior e eis-me a ouvi-lo:
- estive a ouvir o Tell me you are coming back dos Stones e aquilo tem um solo que é um tratado.
E lá íamos nós a procura do solo e ficávamos a adorar o disco. E se era difícil na época gostar dos Rolling Stones! Pessoalmente, só quatro ou cinco músicas dos ditos ultrapassaram o meu limiar e não era nenhuma daquela fase. Claro que gostei do Get off my Cloud e do Jumping Jack Flash, mas era mais dado a pequenas fugas à tradicional xunguice do grupo e por isso o que recordo melhor dos mesmos é o Ruby Tuesday, o If You need me, o She ‘s a rainbow e o Lady Jane. Mas o Jó lá me conseguiu pôr a procurar recentemente uma edição relativa à sua inesquecível descoberta.
Noutra ocasião, referiu-se a um conjunto que teve um êxito retumbante com apenas uma música: os Turtles e o Happy Together.
- Sabes, Luís, lá pelo meio, depois daquela parte mais rápida, quando eles começam de novo “Me and You...” aparece uma música de fundo tão linda como eu nunca ouvi. Hás-de ouvir.
E era bem verdade, tão verdade que nunca consegui esquecer esses pequenos pedacinhos da nossa maravilhosa vivência nem quem me ajudou a descobri-los.

Alcunhas oureenses

Vamos actualizar o inventário de alcunhas constante do livro do Dr. Durão que já apresentámos. Limitamo-nos à caracterização de pormenores que nos eram simpáticos nas pessoas em questão. Por isso, calámos outras que sabemos existentes, mas exploram eventuais ressentimentos ou poderão ser mal interpretadas.
Avião. Ser quase mitológico que chegava às reuniões sistematicamente com cinco minutos de atraso agravados pelos procedimentos de desembarque. Fazia-se conduzir numa mota virtual comandada pela capacidade das suas pernas. Fazia ruído quase real, tinha as quatro velocidades e marcha atrás. Quando chegava tinha de estacionar e então víamos que era o Zé Rito. Desconhece-se o responsável pela alcunha, possivelmente teremos sido todos e terá tido evolução até estabilizar na apresentada.
Chien. Obviamente que não podemos esquecer o grande amigo que era o sr. Ezequiel que trabalhava no Café Avenida e com o qual contactávamos todos os dias. As suas características não passaram em claro ao Jó Rodrigues que se encarregou de o eternizar com esta alcunha. É pai de um distinto oureense.
Jones Bittus. Tratamento carinhoso que, sob responsabilidade do Jó Rodrigues, foi atribuído a um oureense de outra geração que nos era muito simpático, o sr. Júlio barbeiro, só por si responsável pelo nascimento de dois distintos oureenses.
Kansas. Não sei se se lembram, mas, na época, o Mundo de Aventuras (e a esta distância não percebo o que é que deu na cabeça ao Roussada Pinto e amigos para fazer este disparate) só publicava histórias de cow-boys. Os nossos ídolos eram então o Cisco Kid, o Buck Jones, o Kit Carson e o Kansas Kid. O nosso Ramiro Arquimedes, pelo seu porte, pelo modo como pegava no cigarro e extraia baforadas, pelo seu temperamento que ninguém vergava, tinha notáveis semelhanças com o Kansas Kid e assim ficou para a posteridade. É desconhecido o autor da alcunha.
Pele e Osso. Se não estou em erro, era o nome pelo qual era conhecido o Chico César, praticamente o único oureense que se atrevia a usar máscara no Carnaval e que, segundo reza a lenda (Jó Rodrigues) terá tido um dia a perna atravessada por uma cana de foguete.
Robalo. Provém de Ribeiro, passou por Ribeirinho, Ribeirinho que estás tu a murmurar,… depois não sei porque metamorfoses linguísticas se terá fixado em Robalo a designação com que distintos oureenses resolveram brindar este V. servidor. A verdade é que, ainda hoje, muitos me tratam por esta alcunha.
Zebra. Animal de duas patas cujo tronco era da largura do pescoço o que terá originado uma procura de semelhanças com o de quatro patas correspondente. A agravar a parecença o facto de por vezes usar camisolas às riscas e nas deslocações evidenciar dificuldades constantes de equilíbrio. Trata-se obviamente do Zé Quim. A autoria da alcunha terá sido minha ou do Jó Rodrigues.

O tiro saiu pela culatra I

Naquela noite, distintos oureenses dirigiram-se para as imediações do cemitério, mais concretamente, para o pedacinho de pinhal entre a estrada que conduz ao dito e a estrada que liga Ourém a outras urbes. O objectivo era pregar um valente susto a todos os que entrassem ou saíssem da terra utilizando o meio de transporte dominante na época: a bicicleta.
Kansas, cujo nome não divulgo para respeitar o segredo histórico (nesta época, em que são tão importantes o segredo de justiça, o segredo estatístico, o sigilo bancário não seria de bom tom actuar de outro modo), o maior conhecedor de tal produto em todo o século passado, retirou de dentro de uma caixinha um pedacinho de pólvora que colocou sobre uma pedra previamente limpa, formando um pequeno rastilho com perto de 20 centímetros e, no extremo, uma pequena aglomeração. O Zéquim, tão alto que conseguia ver por cima dos pinheiros, estava vigilante e a certa altura disse:
- Prepara-te, vem aí alguém.
Kansas sacou do fósforo e preparou-se para o acender. De repente, ouve-se a voz do Zéquim:
- Fogo!
Kansas acende o fósforo, aproxima-o do rastilho, vê-se ume pequena labareda, Zéquim dá saltos com os braços no ar e o ciclista desata a pedalar que nem um louco direito a Ourém.
- Ena, pá! Que grande susto ele apanhou.
Decerto pensou que éramos fantasmas, temos de fazer com mais pólvora.
E Kansas repetiu a preparação com mais pólvora. Pouco depois, eu avisei:
- Vem aí outro.
Kansas acende o fósforo e aproxima-o da pólvora, Zéquim esbraceja, ouvem-se gritos, a chama tinha sido muito maior, mas, ao mesmo tempo, sente-se um desconfortável cheiro a penugem de frango queimado. Kansas grita ainda mais:
- Eh, pá! Lixei-me, estou todo queimado.
Efectivamente, o aspecto dele era horrível, o cheiro também não indiciava nada de bom.
Que havemos de fazer? Se pedimos ajuda, ainda nos descobrem.
E fomos pela rua que conduzia à Avenida. O desconforto de Kansas era cada vez maior, a nossa atrapalhação não tinha nada de bom. Até que o valente Kansas assumiu: eu vou para o hospital, vocês ficam aqui, depois encontramo-nos.
Acompanhámo-lo até perto do hospital. Aí recebeu os magníficos cuidados do excelente enfermeiro Cruz. Voltou passado um bom pedaço de tempo com a cabeça toda envolvida em ligadura: vou para casa, tenho que ficar assim durante uns meses.
Não o vimos durante dois ou três dias. Depois lá voltou ao Avenida para as sensacionais partidas de king. Ao fim de algum tempo, pôde tirar as ligaduras e vimos as lesões em quase toda a extensão. Estava todo pintado de vermelho com tintura ou mercúrio, já não sei precisar. Obviamente, o seu estado foi notícia durante alguns dias, mas, que eu saiba, tudo ficou bem calado e não pareceu mais do que um acidente doméstico.
Kansas não foi afectado pelo que se passou, o seu desenvolvimento prosseguiu embora um pouco afastado de outros oureenses, ele sempre cultivou algo mais libertário, mais arquitectural. Mas esta recordação é património comum.

O tiro saiu pela culatra II ou... é preciso repor a verdade histórica

Amigo Robalo (Luís é bonito, mas este peixe, por menos informal, transporta-me a outros mares, atlântidas desaparecidas, mas persistentes nas memórias)
Bem, li a história e… quem conta um conto acrescenta um ponto, não é assim?
Vamos lá então.
Lembro-me que éramos para aí uns catorze, entre os quais o Zé Domingos que
desenhou uma caveira com a pólvora, do modo a que, quando esta se incendiasse,projectasse a imagem desenhada. Assim, perto do cemitério, estás a ver o efeito!!!
A ideia era assustar a mulherzinha que vinha com o alguidar de roupa à cabeça, mas o homem da bicicleta dos pneus grossos (à francesa) adiantou-se e, a precipitação originou, como muito bem disseste, uma monumental chamuscadela na tromba do Kansas.
Fomos direitos ao chafariz que havia à porta da casa do Abel Faria (pai do Aguinaldo e do Vitó que têm uma bomba de gasolina perto da taberna do Frazão) e, armados em ferreiros, metemos a cabeça do Kansas debaixo da água que corria da torneira, qual ferradura incandescente. O cheiro a grelhado era intenso e o cagaço também andava por aí.
Resolvemos então ir até à farmácia que estava de serviço que era a do Dr. Verdasca. Entrámos, o Kansas, o meu primo Quim (irmão de Julito) e a minha pessoa.
Estavam o dr. Verdasca e o dr. Oliveira em amena cavaqueira quando entrámos por ali adentro.
Diz logo o dr. Oliveira(padrinho do Kansas):
-Ó Arquimedes (era assim que ele o tratava) o que é que se passou?
O Kansas, nada, não piava.
Respondi eu:
-Foi com uma bicha!
Dr. Verdasca:
- Bicha?! Nã, isso foi com água a ferver.
Dr. Oliveira:
- Não me parece, pelo aspecto deve ter sido ácido.
Bem entre o ácido e a água a ferver, lá nos aconselharam a ir ao hospital para fazer o curativo.
Quem estava de serviço era uma enfermeira que, sem hesitar, besuntou o trombil do Kansas com uma pomada que o rapaz até fosforescia.
Era preciso ir pôr o Kansas a casa. Saímos do hospital e lá fomos os três: eu, Kansas e o Quim.
Assim que saímos a porta de ferro do velho hospital, ouvimos uma voz de aflição a gritar no meio da rua:
- ó Ramiro, Ó Ramiro!
Deixámos que a mãe do K passasse e escondemo-nos na antiga garagem do Zé Leal que, como te deves lembrar, ficava encostada à casa do Kansas. Entrámos e por pouco íamos caindo no alçapão utilizado para a reparação e lavagem das camionetas.
Não sei por que artes, a mãe do Kansas descobriu que estávamos ali escondidos e, junto ao portão grande da garagem pôs-se a gritar: Sai daí, eu sei que aí estás! Depois de repetir a dose não sei quantas vezes e, talvez comandado pelo desespero ouve-se a voz do Quim (que era –ainda é- gago):
- Nãããã tátátá cácá ninninguém!
E foi assim que a história terminou, que não pró Kansas que parece ainda teve espaço para levantar uma monumental carga de porrada.
Peço que não repares na forma como a história está escrita, porque ela saiu de rajada e foi assim que ficou.
Fala com o Quim. Talvez ele possa acrescentar ou tirar alguns exageros que, como sabes, de tão contados dão em lenda.
Grande abraço
Zéquim

Uma história de amor

Existem múltiplas razões para desejar que esta simpática construção se mantenha.
Dirão os meus amigos oureenses: lá vem ele com aquela saudade da juventude que já tresanda a bafio.
Não, meus amigos, mais uma vez, eu julgo que tenho razão.
Se bem me lembro era perto daquele local que noutros tempos tinha lugar a feira nova, conhecida oficialmente por feira de Santa Iria, mais ou menos entre os dias 25 de Outubro e Dia de Todos os Santos. O carrossel, com as suas girafas, cavalinhos e bancos, ficava mesmo colado à tesouraria da Câmara. Os automóveis de choque espalhavam-se a partir daí até ao posto da GNR. Mais abaixo, havia espaço para vendas típicas da ocasião e, no local onde surgiram aquelas habitações viradas para o jardim (e que eu tenho a sensação que não estão ali nada bem) o espaço era repartido por aviões, poço da morte, circo e povo. E por todo o lado surgiam charlatões a apregoar e vender os mais diversos produtos e serviços:

E não leva só os cobertores, leva também este magnífico balde de plástico...
Ainda me recordo de como, no Domingo e na Quinta-feira, Ourém se enchia de gente que eu não fazia a menor ideia que existia. Pessoal de bicicleta e carroça. Gente com o guarda-chuva às costas, enfiado sobre a gola do casaco.
E lá em cima o depósito tudo vigiava bem atento.
Imaginemos um desses dias de festa. O carrossel anda as voltas carregado de miudagem. Os cobradores entram e saem enquanto a sua música anima o ambiente. Ouve-se o Poetry emotion, mas ao mesmo tempo nos carrinhos de choque dá o I only want to be with you. O pessoal anda animadíssimo de um lado para o outro. As detonações dos que se divertem a testar o músculo com aquele carro pesadíssimo por vezes introduzem uma nota mais assustadora.
O dinheiro da juventude não era muito pelo que as diversões em termos gerais eram fundamentalmente duas: andar no carrossel, carrinhos de choque ou outro e ver quem andava no carrossel, carrinhos de choque, ou outro...
E foi num desses exercícios de contemplação que demos pela coisa. De repente, a música deixa de ser a que era e ouve-se a voz de Justin Hayword:

Nights in white satin, never reaching the end, letters I’ve written, never meaning to send... Yes, I love You...
Um distinto oureense, senhor de excelente figura e muita lata, acaba de cair nas boas graças de uma linda menina com a qual vai passear nos carrinhos de choque. E foram dias e dias a apreciar esta história. Ela era linda de morrer, ele fez inveja a todos os que os viram.
O tempo passou, pouco ou nada sei deles, mas sei que aquele velho depósito registou esta história toda, porque nem por um minuto dali saiu. Por isso, não deve ser abatido.

Dar a cara

Constituí a minha biblioteca de textos de Marx e Engels fundamentalmente entre os anos de 1968 a 1972. Tudo começou em Económicas com a luta estudantil, o surgimento dos primeiros textos subversivos editados pela Associação de Estudantes como o Contra a Fábrica ou outros deixados pelos corredores com a imagem de Marx a indicarem algo sobre o conteúdo.
Pouco a pouco, fui conhecendo lugares onde podia descobrir as obras básicas do Marxismo, subtilmente expostas: o cantinho da Barata, a Portugal, a Sá da Costa, a Livrelco... Os anos ajudaram a sobrepor essas leituras àquelas que fazia antes e que se baseavam dominantemente em banda desenhada e nos textos de livros que as elites diziam ser de má qualidade e de que guardei alguns exemplares bem saborosos.
Em minha casa, tenho toda uma série de recordações desses tempos, dessas leituras. Mas isto faz-me voltar a outros que considerava monumentais secas e era obrigado a ler quando estudava, como os Lusíadas, ou os de Júlio Dinis, apesar de sempre sentir um fraquinho pela prosa de Camilo, especialmente depois de ver, no cine teatro de Ourém, o Amor de Perdição ou de deparar com introduções como esta
:
era tão linda a Rosa do Adro....
E recordo os esforços monumentais de um professor, o Dr. Laranjeira, para nós entrarmos nestas obras, o que o levava a distribuir as personagens pelos alunos dando, desde logo, um outro interesse, uma outra vida, à leitura, como naquela obra de Garret que atinge o máximo da emoção no momento em que aquele que regressa, sem ninguém o reconhecer, é submetido à tão conhecida questão:
- Quem és tu, romeiro?
E eu, apontando aquela figura difusa que ostenta um jaquetão em tudo semelhante aos que terão sido usado pelo Jó Rodrigues, pelo Zé Manel e pelo Rui Temido, que mostra uma magreza sem limites ao ponto de o seu pescoço ser substituído por uma chaveta, mas hoje já transportando mais uns trinta quilinhos em cima, que encontra em Marx os fundamentos da interpretação que faz do social e de uma concepção que procura mais justiça, mais verdade e eliminar a exploraçãoe a corrupção, mas que também se revê nas maravilhosas aventuras daquela figura galante, criada por Salinas, que cortejou a Lucy, a Silvia e a Flor Vermelha, ou daquela outra, cujo autor foi Raymond, e que viajou pelo planeta Mongo onde resistiu à rainha Fria e consumou o seu amor pela Dale, respondia:
- Aquele....

A equipa maravilha

Podem falar nos putos do hóquei, podem falar nas internacionalizações, podem falar no Luís Porto, mas, para mim, a equipa maravilha, aquela que defrontou o Livramento, aquela que quase humilhou o Futebol Benfica com um bem claro 5 a 3, aquela que entusiasmava as gentes de Ourém ao ponto de os seus clamores atingirem e atemorizarem Tomar, Abrantes, Torres Novas, Marinha Grande e Turquel, era a formada pelo Mário, Abel, Rui Prego, Rui Costa, Piriquito e outros que não me lembro, mas que julgo que integraram o Ferraz, o Pintassilgo e, ele o diz, o Vitor Castanheira.
Quando o Abel saiu, o Pintassilgo, talvez o mais habilidoso de todos, entrou, e logo ganharam o distrital. Que magnífico feito!
Que pena não ter uma fotografia desse tempo.
Constato que a tradição do hóquei não se perdeu, independentemente de vir sob o nome Atlético ou Juventude. Mas uma coincidência engraçada é o facto de o treinador dos putos, grandes campeões do século XXI, aquele que os tem conduzido a saborosas vitórias apesar de poucas vezes ser nomeado, ser filho de um desses magníficos que lutavam na equipa maravilha.

Ainda a tempo...
E eis que mão amiga me faz chegar duas fotografias desse tempo. Uma delas, nas costas, tem escrito a lápis 1959. São com certeza fotografias desse tempo.
E reconheço, na de cima, o Abel, o Rui Costa, o Rui Silva (Prego), o Borga (inicialmente pensei que era o Fonseca),o Mário e o Armando Pereira (Piriquito). Será que alguém consegue dar uma ajuda quanto ao treinador?
Na de baixo, a ignorância é maior: o guarda-redes é o Setenta, mas não consigo reconhecer o seu substituto. Já aparece o Pintassilgo ao lado de um dos irmãos Costa. Atrás, aparece o Mário sem ser na posição em que o recordo, o Armando, o Abel e um outro jogador, capitão de equipa, que também me é desconhecido.
E aqui fica o convite a distintos oureenses: será que alguém consegue dar uma ajuda no reconhecimento? Ou quer publicar algo sobre isto?

E as ajudas do Sérgio
O capitão de equipa que não reconheceste era o Raul (do Entroncamento)...
Grandes tempos e grandes feitos!

Feedback-to-Feedback
Sérgio Ribeiro () @ 06/09/2004 12:22:
Só mais um e a fugir... na foto de cima o guarda-redes é o Tó Borga.
Tenho de ir à vida!

Bufos

Faz agora quarenta anos
O meu irmão chega a casa, penso que já na Rua Santa Teresinha, para almoçar.
- Sabe, mãe, o Sérgio foi preso. Coisas de política.
- Eu logo vi que isso ia acontecer a esse rapazinho.
Viram-se os dois para mim.
- Luís, ai de ti se te metes na política.
E eu, aterrorizado, ainda sem conhecer as masmorras da PIDE (que felizmente nunca conheci):
- Estejam descansados, eu sei tratar de mim.
Mas o meu irmão ainda parecia saber qualquer coisa mais:
- Consta por aí que foi denunciado por alguém de cá a propósito da Direcção da Casa de Ourém. Ele e o pai são da oposição.
Impressionante. Como é que alguém consegue denunciar outrem por causa de ideias diferentes? Andar ali, a fingir-se amigo e depois dar a estocada...
Anos mais tarde, uns dias depois do 25 de Abril, na EPAM, vi, com um arrepio e espanto, dois irmãos gémeos, que se sentaram ao meu lado em económicas, ser detidos por, também, serem informadores da famigerada polícia política. Felizmente, nunca tinham reparado em mim.

Ourém, uma ferida

Tinha talvez os dezanove anos. Estava todo empenhado nas económicas e a saborear os primeiros textos subversivos quando a carta chegou:

Caro Luís, mudei de emprego. Quando voltares, deverás fazê-lo para Fátima. Alugámos lá uma casa…

Ao princípio não me apercebi das consequências, mas ao fim de algum tempo, a ferida abriu.
Ourém já não era estar, Ourém era apenas passar.
Deixei de ver a malta amiga sempre que havia férias. Deixou de haver noitadas, bailaricos em garagens e em sótãos bem revestidos. Para mim ficou provada aquela ideia: quem desaparece, esquece.
Aos poucos deixei de aparecer. Umas vezes não os encontrava, outras já não podia ficar mais, a última camioneta era às dez para as sete. Um dia, levei o Anti-Dühring para o Avenida e alguém me diz:
- andas a ler essas m...? Também és desses?
Outro dia, soube da morte do primeiro dos que já partiram….
Fechei-me em Fátima. Não fiz outros amigos. Como? Se aqueles os conhecia quase desde que tinham nascido?
Ler, ler, ler, escrever também um pouco. É que havia aquela sensação de que algo tinha ficado por dizer, e múltiplas coisas por fazer…

Marx em Ourém

Já era um revolucionário de primeira. As fugas frente à polícia tinham sido umas tantas. O curso estava quase acabado e eu sentia que, com os ensinamentos de Marx e Engels, conseguiria mudar o mundo. Presente estava sempre uma daquelas teses sobre Fuerbach:
até agora os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo, quando o que interessa é transformá-lo.
Um dia encontro o Zé Domingos que, possivelmente, tinha passado pelo Poço. Parecia um enviado do futuro.
Sabes, Luís, estivemos a falar e entendemos que devíamos aproveitar os jornais de Ourém para fazer alguma coisa pela terra. Queres colaborar?
Foi dito e feito. A partir dessa data e, talvez por dois ou três anos, os leitores do Notícias de Ourém e do Ourém e seu Concelho não conseguiram livrar-se de mim e das minhas brilhantes análises. Causei alguns incómodos aos directores dos dois jornais, Luís Rito e Melo, mas o certo é que sempre me trataram bem. Quantos aos benefícios para a terra é que talvez sejam de mais difícil contabilização.
Karl Marx inundou Ourém.

sexta-feira, junho 25, 2004

Capítulo II - Alguns aspectos da minha relação com a imprensa de Ourém

Vamos até Ourém nos anos de 1972 a 1975.
Como relatei, estava afastado da terra já há alguns anos, mas havia a necessidade de dizer algo. Alguns artigos na imprensa oureense da época deram a ideia inicial. É que nisto de escrever o mais difícil é começar, há sempre o receio de que os outros podem não achar bem.
Regularmente publicava-se um “Figuras da nossa terra”. Baseando-me nessa ideia avancei com um “Figuras de todo o mundo” que, isso foi bem claro para mim, teve algum sucesso, parte do qual foi testemunhado em números seguintes do jornal que também publicou a minha reacção.

Figuras de todo o Mundo

A juventude do silêncio

Exaltar a humildade? Para conservar os humildes servos

Vegetar

Eu, marxista me confesso
Lá para 14 de Julho, talvez de 1972 (ou 1973?) enviei mais uma provocaçãozinha para o Notícias de Ourém: um artigo condenando as sociedades baseadas na exploração do trabalhador e convidando à participação na construção de uma sociedade em que todos participassem na decisão e no trabalho.
Houve quem não gostasse e reagisse. Aqui vai a história toda.

A lenda do imperador lucro

O Queixinhas

Bota abaixo, bota acima, de D.Gastão a sua rima

A vaidade dos intelectuais
O "Ourém e seu Concelho" também sofreu o ataque do sábio LV cada vez mais detentor da verdade absoluta, com a arrogância que a quase licenciatura lhe dava. São disto exemplo títulos como a “Contribuição para a História do país que eu conheço”, “a cidade”, “o campo” que, no fundo, limitavam-se a explorar jargões e contradições da época numa tentativa não muito bem sucedida de aplicação a Ourém.

Contribuição para a História do país que eu conheço

A cidade

O campo

Visado pela Comissão de Censura
Alguns artigos destinados ao Notícias de Ourém e ao Ourém e seu Concelho tiveram problemas com a censura. Aqui reproduzimos alguns dos que terão contribuído mais para as dificuldades dos que planeavam esses jornais.
O primeiro deles, A verdade da Ciência, é uma descrição de transformações ocorridas no meio universitário em finais dos anos sessenta início de setenta. Estou ainda a ver o Eduardo Graça a levantar-se no meio de uma sala cheia de estudantes atentos e a interpelar o sábio de momento. Recordo a luta imensa do Félix Ribeiro, do Ferro Rodrigues e de outros cujos nomes o esquecimento já levou para a transformação do ensino em Económicas numa altura em que era frequentemente visitada pelas forças da repressão.
A Faca e o Bolo é o modo como mais gosto de analisar a inflação: uma luta entre dois grupos sociais para se apossarem de uma fatia maior de um produto real que só pode pode aumentar pelo trabalho e não pela expressão monetária. Este artigo foi mesmo cortado pela comissão de censura vindo a ser publicado no Notícias de Ourém pouco depois do 25 de Abril.
Também escrevi algo sobre a situação política internacional, onde o socialismo, a ameaça de guerra nuclear e outros temas ofereciam perspectivas de reflexão. Uma das que me impressionou mais foi o exemplo do Chile. Apesar de não acreditar muito no socialismo em liberdade, tinha a secreta esperança… Tudo se veio a desmoronar com o canalha do Pinochet. Agora estou convencido que não podemos enveredar por este tipo de processos sem que exista um grande enriquecimento cultural entre as massas populares: provou-o o Chile, provou-o Portugal onde felizmente o contragolpe não foi tão violento. E depois de tudo aquilo, como me custou, quando estava na tropa e comentava o acontecido com o mancebo Amorim, algum tempo depois um militante trotskista, ouvir da boca dele: o que se passou no Chile foi uma miserável traição…
Termino com um artigo que nem viu a luz do dia em qualquer dos jornais da terra. Já não me lembro porquê. Também já não recordo os fundamentos do artigo embora reveja nele as paredes de Mafra e o magnífico retorno da semana de campo quando estávamos na EPAM e o 25 de Abril se avizinhava. Eu cantava, o Boisano dava o tom, o Sílvio era o político que sabia de tudo, estava também lá o Reis do futuro PS, o grande amigo Albino…

A verdade da ciência

A faca e o bolo

Mururoa

Os dissuasores

A morte de Salvador Allende

Olhos postos no Chile

A vi(o)la da loucura

As redacções da Guidinha
Por aquela altura, tornaram-se célebres textos sem pontuação, publicados no Diário de Lisboa e conhecidos como redacções da Guidinha. Já não me lembro o que me deu para reproduzir a ideia no «Notícias de Ourém» e no «Ourém e seu Concelho». O certo é que bombardeei os leitores com alguns textos do mesmo género, que reflectiam algumas das minhas preocupações do momento, mas que, confesso, agora tenho alguma dificuldade em justificar.
Também é de acreditar que o facto de estar a cumprir serviço militar me tivesse criado a necessidade de tudo ser mais obscuro. Aliás, um dos textos, «Os Abutres» é um relato da instrução militar que fazia em Mafra e das paragens para descanso e "matar o bicho" que nos eram concedidas.
Confesso que tive um serviço militar que se pode considerar uma maravilha. Na instrução, com imenso receio, tive a sorte de calhar com um instrutor bem formado detentor de grande respeito por todos os elementos do pelotão. Na especialidade, mais tranquilo, começámos a sentir os cheirinhos que a revolução do 25 de Abril nos enviava: tal ocorreu na semana de campo e em muitos contactos com colegas e militares mais graduados. Depois, foi o magnífico período da revolução onde tive a sorte de participar e de viver praticamente até ao famigerado 25 de Novembro que transformou a revolução popular em revolução democrática, isto é, em algo, que dando alguma voz aos explorados e oprimidos, permitia a sua exploração pela classe detentora dos meios de produção.
Se "Os Abutres" é o caso mais explícito, para os outros textos não consigo mesmo qualquer justificação, sendo que num deles existe uma referência a avisos que lia no Notícias de Ourém quando algum texto era mais forte, «Cuidado com o fogo», e outro é uma recordação dos vendedores da banha da cobra na feira nova que se realizava no largo da feira do mês, junto à casa do Sr. Manuel Raul, pai do Cúrdia, em tempos de meninice…

O charlatão da feira nova

O encontro

Queda no abismo

Os abutres

Um verdadeiro tiro no pé…
Foi o que me aconteceu com a história do Castelo dos Sonhadores. Afinal eu até gostava do castelo (vivi numa casa parecida com um castelinho à entrada da rua de Castela) e achava um piadão à terra ali entalada entre o castelo e os moinhos. Mas as lamúrias constantes nos jornais da terra irritavam-me solenemente. Então, um ente superior como eu,um marxista-leninista dos puros, tolerava aquelas coisas execráveis????.
É claro que levei tareia até dizer chega. Aos poucos tentei recuperar e a bondade dos meus adversários que viram nas minhas palavras a irreverência da juventude ou sonhos utópicos permitiu-me sair da crise. Mas o Postigo de Alberto Pinheiro não merecia ser tão maltratado como eu o fiz e, afinal,o UM OURIENSE até tinha alguma razão.
Aqui fica a história quase toda. Já não sei é como começou…

O castelo dos sonhadores

O meu postigo

Coisas do nosso tempo...

O postigo da história

Finalmente, este grupo de artigos termina com uma referência ao modo como abordei o 25 de Abril nos dois jornais de Ourém.
A partir dessa data grande parte da minha produção foi excessivamente afectada pelo sectarismo reinante pelo que não descortino o menor interesse na sua recordação e publicação.

Figuras de todo o Mundo

Em figuras da nossa terra fala-se em doutores, industriais, benfeitores que alguma vida trouxeram ao nosso meio. Não se fala no «Zizi» ou na Amélia Perra. Não se fala porque não são figuras da nossa terra.
Eles são figuras de todo o mundo.
Eles estão na América Latina, na África, na Ásia, nos bairros da lata, nas barracas, nos bidonvilles, nos guetos.
A todo o momento, a sociedade que os criou, os espezinha e os marginaliza.
A sua vida foi uma imensa produção de riquezas. Neste momento, alguns só têm de seu a barriga podre de álcool que os acompanha enquanto esquecem, adormecidos, em qualquer valeta. Outros perdem-se no ocaso de uma vida nobre toda dedicada ao trabalho.
A estes nós esquecemos, nós fazemos por esquecer. Porque são um desafio à nossa comodidade cheia de individualismo. A nossa consciência não comporta mais problemas que a salvaguarda do lucro e da acumulação.
Na América Latina, de cinco em cinco minutos, morre uma criança de fome. Nos Estados Unidos, em cada cinco minutos, faz-se urn opíparo banquete. Até quando?
Até que todos nós compreendamos que eles também são produto do nosso bem-estar. Produto e obreiros. E os alimentos não param no estômago.

A juventude do silêncio

De um filme recentemente passado num estúdio de Lisboa retira-se a seguinte ideia: "A juventude de hoje é filha de Marx ou da Coca-Cola(*)'. Se existe grande soma de verdade nessa afirmação, parece-nos que ela esquece os que não são uma coisa nem outra. Isso é natural, pois a frase situa-se num país com determinantes económicas semelhantes ao nosso mas com uma formação ideológica totalmente desigual.
Entre nós é bem diferente. A Coca-Cola já se tornou objecto de consumo corrente não na forma tal qual é mas sim noutras formias mais sofisticadas enquanto o restante permanece ausente muito embora apareçam algumas "ovelhas ranhosas".
É assim que, para a nossa terra, temos de modificar quase total-mente o sentido da expressão. E se por vezes o silêncio coincide com a Coca-Cola, os interesses dos seus portadores levam-nos ao seguinte: entre nós, a juventude é filha do silêncio ou da Coca-Cola. Mas nada de confundir silêncio com a ausência de barulho de motorizadas ou de música pop. Este é bem querido e estará sempre presente.

(*) Masculino - feminino de Godard

Exaltar a humildade? Para conservar os humildes servos

Eu creio que se existisse urn para cada oprimido, não haveria habitantes que chegassem para os "Becos da Pouca Sorte". Mas seria boa a existência de pelo menos um para que a consciência se não desanuviasse pelo simples tomar uma bica.
Não gosto de exaltar os humildes nem a humildade. Pelo menos nos termos em que isso usualmente se faz que mais não visam do que manter as pessoas na apatia em relação às suas condições de vida bem real. E isto por uma razão bem simples.
A pouca sorte de uns está muito ligada à boa sorte de outros. Por isso, o "Beco da Pouca Sorte" ficaria em beleza ali mesmo no centro da praça, lugar de passagem quase obrigatório para todos os ourienses. Talvez assim se sentissem mais estimulados a uma actividade social visando os problemas colectivos, em vez de resolverem os problemas dos outros com uma esmolinha ou um prato de sopa.
O Mundo destrói hoje em guerras bens que dariam para alimentar muita gente. A riqueza de hoje daria mesmo para todos terem uma vida decente com os problemas culturais e de distracção bem resolvidos. Mas o fosso vai-se cavando e alargando. E aqueles de que falámos em "figuras de todo o mundo" serão cada vez mais se uma acção colectiva os não elevar a níveis de vida dignos de seres humanos.
Essa acção pode ser só deles ou de todos. Depois não se queixem, porque, apesar de tudo, eles são conscientes.


Nota: Na época Figuras de todo o mundo provocou alguma agitação. Houve uma resposta publicada no Notícias de Ourém cujo autor já não recordo, mas que era muito simpática. Esta é uma contra-resposta: uma saída à revolucionarão da época.

Vegetar

Era uma vez uma terra.
Havia lá pessoas e tudo. As pessoas trabalhavam durante o dia e descansavam à noite. Algumas não faziam assim mas também não trabalhavam à noite.
Geralmente mostravam-se assoberbadas com os seus negócios sem compreenderem que eles não seriam possíveis sem o trabalho dos outros.
Estes estavam na fabrica, no escritório ou no campo. Após uma jornada de trabalho viam que, com o que recebiam, podiam comprar pelo menos o produto de três horas. Isso não os inquietava muito, porque tinham mais em que pensar.
Assim, nos tempos livres, dedicavam-se aos copos, ao jogo ou à televisão. Se o trabalho as poluía, o mesmo acontecia com os outros elementos. Mas isso não o compreendiam porque eram a sua liberdade, a liberdade possível.
Como já devem ter notado, havia também duas juventudes: a que sonhava com pópós e a das fabricas.
Não se falavam. Naquela terra era um crime olhar para mais alto ou para mais baixo, por isso cada uma aspirava às posições paternais. Com algumas excepções. Excepções que podiam ser o Cavalo de Tróia do marasmo que aí se vivia, e abrir decisivamente o caminho para uma real cooperação entre as pessoas, cimentando a sua amizade em vez de recalcar ódios.
Porque, desculpem que o diga, o que lá se faz, é vegetar.

A lenda do imperador lucro

Em terras infinitamente longínquas, vivia um imperador com extensos domínios povoados e trabalhados pelos seus servos. Da riqueza produzida, uma parte ficava para eles viverem como porcos, outra ia para o palácio onde a imensa corte se divertia em lautos banquetes.
Um dia, estalou uma revolta num desses domínios. Incapaz de agir só por si, o imperador mandou servos de outros domínios lutar contra os seus irmão de classe. Mas aí a riqueza deixou de aparecer e os banquetes pararam de se realizar. O imperador espasmou de fome e, um dia, não pôde deixar comida aos servos que faziam a sua guerra. Então, logo eles também se revoltaram o imperador caiu.
Em seu lugar, quiseram eles construir uma nova sociedade em que todos participassem. Uma sociedade cujo motor não fosse o lucro, mas a utilidade social do trabalho de todos e dos bens de cada um.
E era verem-nos contentes transportar para o património comum tudo o que haviam produzido e, depois, decidirem colectivamente o uso a dar a cada coisa. Feito isto, planeavam o trabalho futuro e distribuíam entre si as tarefas.
Vocês desculpem, tudo isto foi uma lenda passada em terras infinitamente distantes. Mas pensem na sociedade nova e da outra tragam o que puderem.

O Queixinhas

O nosso Correio
Senhor Director
Anda por cá uma verdadeira euforia marxizante em que com pezinhos ora de lã, ora de pólvora se faz uma doutrinação subversiva sem nada de construtivo em troca.
«A Lenda do Imperador Lucro», publicada em 14 de Julho, no vosso simpático jornal, condena o lucro. Eu também condeno o lucro que vai parar às algibeiras de quem faz pouco e deixar à míngua de recursos essenciais os que fazem qualquer coisa. Mas a condenação pura e simples do lucro não conduz a nada de construtivo. Ou conduzirá?
Gostava muito que o autor da lenda explicasse um pouco mais o seu pensamento. Assim sem mais é o bota abaixo. E como será o bota acima?
Seu o leitor assíduo
Gastão da Cunha Ferreira

Bota abaixo, bota acima, de D.Gastão a sua rima

Insinuações e calúnias são as armas de quem nada pode demonstrar. No dia 14 de Julho, disse-se o seguinte no «Notícias de Ourém»: "Em seu lugar quiseram eles construir uma nova sociedade em que todos participassem. Uma sociedade cujo motor não fosse o lucro, mas a utilidade social do trabalho de todos e dos bens de cada um.
E era verem-nos contentes transportar para o património comum tudo o que haviam produzido e, depois, decidirem colectivamente o uso a dar a cada coisa. Feito isto, planeavam o trabalho futuro e distribuíam entre si as tarefas".
O artigo terminava com um convite à reflexão sobre essa sociedade e, no caso de se decidirem por ela, a aproveitarem tudo o que de bom encontravam naquela onde viviam.
Uma coisa é certa: a debilidade mental do sr. Gastão da Cunha Ferreira não poderá fazer parte dessa sociedade. Porque depois de me dar roda de marxista, falinhas mansas e bombista, necessitou de mentir para justificar essas qualificações.
Em conclusão: desprezo aos executantes de tão ruim ofício. E se lhe respondemos foi pelo respeito que nos merecem os leitores do «Notícias de Ourém».

Contribuição para a História do país que eu conheço

Na escola ensinaram-me que a minha terra era um produto do país onde vivia. Ensinaram-me que as relações que lá havia eram determinadas por relações mais complexas capazes de lhes conferirem um lugar e uma função.
Apesar de tudo vou seguir o caminho inverso. Ciente de que aquilo que conheço é senbor de uma especificidade notável, tomá-lo-ei como característica essencial do geral ao qual pertence. E irei falar em todas as relações que Iá se manifestam, pois são elas que fazem História mesmo que o seu conteúdo se mantenha anos sem conta.
A História é o produto da luta do homem pela vida, luta que se manifesta em todos o campos: no trabalho, no intelecto, na sociedade...
Vocês poderão dizer-me algo sobre a vossa luta? Eu direi o que me fazem lembrar, contar-Ihes-ei como os vejo, como vejo a vossa vida e só desejo que alguém me demonstre que estou errado.

A cidade

Vive-se numa Vila que poderia ser uma cidade ou uma aldeia.
Aí se encontram todos os vícios que o desenvolvimento é pródigo em gerar: o individualismo, a clubite, o enfarte, a alienação...
Cada família faz de sua casa um castelo. Encontra-se com outras no café de preferência onde vê televisão e fala de tudo menos do que na realidade teve interesse. Elege-se um conjunto de banalidades que serão o prato forte de um papaguear cada vez mais técnico.
"Eusébio uma banalidade! ?"
Claro! Eu sou do contra. Imaginem que em vez de 40.000 a verem um jogo de futebol queria 40.000 a jogarem futebol.
Mas há também a indústria. Umas fabriquetas de madeira que o processo de concentração capitalista atirará para a ruína ou para as mãos dos que já tem tudo. Apesar de os seus donos terem muito. Mas a pequena indústria não e rentável.
Rentabilidade é lucro, taxa de lucro, recuperação do investido.
Será que algum dia pensarão em organizar-se de modo diferente?

O campo

Não é o de futebol ou de hóquei em patins, é sim o da agricultura, desportiva ou não.
Pois lá no campo vive-se mal, cada vez pior (a grande maioria). A minoria, a que vivia bem já não está lá, veio para a cidade juntar se aos manos burgueses industriais e dos serviços, deixando lá, para garantir a ubiquidade, alguns olhos e ouvidos. As bocas essas continuaram a ser muitas.
Hoje sabe-se que quem lá trabalha são velhos, mulheres e crianças. Nada tenho contra o trabalho das mulheres, mas a sua situação na nossa sociedade continua a ser quase de escravidão.
Adiante.
Os fortes esses não estiveram para aturar aquilo por mais tempo. As cooperativas chegaram tarde e ao conceIho nem chegaram. Eles puseram-se a milhas na cidade ou no estrangeiro, não querendo perpetuar a exploração de que foram vítimas os ancestrais.
E tudo segue na mesma. Mas não será possível uma jornada em favor das cooperativas?

A verdade da ciência

Os sábios manifestavam-se por cima de um estrado desenhando estranhos arabescos numa pedra escura e ai daqueles que manifestassem qualquer dúvida pois logo encontrariam uma razão para o pôr na rua e tomar de ponta como se dizia na gíria onde o chumbo era o prato numero um e o terror dos condenados à situação de ouvintes classificados de bons e maus melhores e piores o que contribuía para os isolar mais uns dos outros, guardando só para si as descobertas que as suas mentes opacas conseguiam atingir para no final mostrarem as habilidades esquecidas logo que passassem as grandes provas mas era assim que os sábios queriam desejosos de encontrarem entre a carneirada o sucessor directo da imagem e posição.
Um dia alguém ousou manifestar-se e foi o fim. O sábio logo o quis pôr na rua mas outros lhe seguiam as pisadas afirmando não quererem mais individualismo não acreditarem em verdades eternas a que só ele teria acesso odiarem o marranço quererem participar transformando aquelas sessões numa discussão onde o sábio seria orientador e eles participantes na busca da verdade pois esta não basta ser enunciada tem de ser demonstrada e discutida.
Foi assim que a terra passou a girar em torno de si própria e o sol se transformou numa estrela com movimento aparente.
Mas não se ficou por ai.
Os estudiosos de isolados reuniram-se em grupos transmitiram uns aos outros os conhecimentos granjeados discutiam entre si o que hoje era uma verdade cientes que amanhã ela se transformaria na discussão com outros grupos das conclusões atingidas.
E os sábios...?
Pois os sábios, de início desorientados, a breve trecho compreenderam estarem perante uma verdade desconhecida e sentiram que, traçando directivas aos menos experimentados, os seus esforços eram bem mais compensados pela alegria posta no trabalho e pelos seus resultados bem mais profícuos muito embora imensas vezes tivessem de descer do pedestal para aceitar conclusões melhor formuladas as quais, em última análise, contribuíam para aprenderem bastante mais.
Não terá sido tão fácil como se conta, mas foram anos bem proveitosos para quem os viveu transmissores de um potencial critico que a carneirada nunca alcançaria.

A faca e o bolo

Ei-los prontos à repartição.
São dois homens: um produziu o bolo, o outro encomendou-lho.
As condições-em-que são sociais e pré-estabelecidas.
Mas para a repartição ambos acordaram uma coisa - ela far-se-ia por uma relação entre preço e peso.
O passado ensinou-os: aquele bolo que pesa 1 kg vale 2$00.
Qualquer deles precisa de parte do bolo, um para subsistir, outro para subsistir e mandar fazer outros bolos.
O primeiro pelo seu trabalho recebeu 1$00: por isso teve direito a metade do bolo.
Ei-lo que agora se dirige ao segundo para receber a sua parte.
Mas tem uma surpresa, o bolo já não custa 2$00 mas sim 3$00.
o seu espanto cresce ao mandar pesar o bolo: ele tem apenas l kg.
Resigna-se e leva para casa 1/3 do bolo.
Durante a noite matuta: como é possível que o seu trabalho valha menos que antes se o esforço foi o mesmo.
O cansaço apesar de tudo deixa-o vislumbrar uma saída.
E no próximo dia quando fez novo contrato já não quis um escudo mas sim dois.
É que esse dinheiro representa a divida que a sociedade tem perante ele, perante o seu trabalho; ela deverá ser paga com parte da riqueza que produziu.
A outra parte perante a alternativa de ganhar algo ou não ganhar nada acedeu.
Pagar-lhe-ia dois escudos pelo trabalho que ele incorporaria no bolo.
E este surgiu.
Pesava exactamente o mesmo, tinha o mesmo aspecto, forma e essência.
o dia da repartição.
Com Os seus 2$00, o-que-produziu-o-bolo dirigiu-se ao que lho encomendou.
Espanto!
O bolo já não custava 2$00 mas sim 6$00.
Tudo o mais era igual.
Ele desesperou: como era possível que recebesse mais e recebesse menos?
A noite pensaria no assunto.
Mas será que compreenderia que a sua parte não mudaria enquan-to o outro tivesse a faca e o... bolo na mão?
Mistério: porque sobem os preços?

NOTA Este artigo esteve para ser publicado no número 1920 de 12-5-73. Todavia, motivos de Censura impediram que, nessa data, viesse a público.

Mururoa

Apesar de toda a repulsa manifestada pela opinião pública, a França realizou mais uma experiência nuclear no Pacífico.
As suas elites defendem-na jogando com as necessidades de defesa e da construção de uma grande nação. A verdade é que há mais um candidato. ao rol das superpotências imperialistas.
Alguns jornais de direita classificaram os protestos de hipocrisia. O partido revisionista francês deu-lhes o seu apoio verbal - mas uma vez no poder faria o mesmo...
A paz nunca se construirá pelo medo, mas pela destruição das causas da guerra. Que são, no fim de contas, a exploração do homem pelo homem e de uma nação por outra.
De quem tem medo a classe dominante francesa? Pois dos países que explora, bem como dos seus operários em quem penetra a chama socialista. É contra eles que se constrói a bomba.

Os dissuasores

Na cena política mundial, a China e a França resolveram assumir um novo papel. Assim enquanto os Estados Unidos e a União Soviética resolveram fazer um acordo para limitar as armas nucleares porque as que têm já lhes dão para se derreterem e derreterem os outros, o realismo daquelas duas potências levou-as a prosseguir a carreira por eles iniciada, argumentando pretenderem com isso dissuadir os grandes em relação à utilização de tão condenáveis instrumentos.
É como quem diz: se há fogo na floresta, deitem-lhe mais mato, porque arde mais depressa.
Aqui fica a questão: será que tal política vem impedir ou acelerar uma guerra nuclear?

Olhos postos no Chile

O Chile é, por agora, um caso único na construção da sociedade
socialista, porque assenta na legalidade constituída. Uma coligação de forças socialistas conseguiu pacificamente atingir o poder e dar os primeiros passos para a sociedade nova. Os obstáculos são múltiplos desde o imperialismo norte-americano às forças reaccionárias nacionais que, naturalmente, sentindo-se lesadas, impõem os maiores entraves, aproveitando toda a possível margem de manobra.
Algumas medidas de nacionalização e racionamento foram largamente contestadas. Os Estados Unidos que durante décadas sugaram os rendimentos do povo chileno, tentaram por todos os meios impedir a eleição do presidente Allende e posteriormente moveram um boicote formidável ao desenvolvimento da economia. As classes antes privilegiadas vieram bramar contra o racionamento tentando confundir o povo chileno, senhor de novas condições de vida, em relação aos seus verdadeiros interesses. Não querem deixar compreender que a escassez determina tal facto quando se pretende a igualdade.
Apesar do seu carácter, pequeno burguês e como tentativa de transição pacífica, para o povo chileno vai o nosso calor. Parece que uma revolta militar estalou, que o futuro não será tão brilhante como o prometido, mas, se não houvesse problemas a resolver, ninguém o tentaria. O que interessa é pelo menos o gérmen estar lá e lá permanecer, desenvolvendo-se.

A morte de Salvador Allende

O Chile caiu sob o jugo do fascismo. As forças reaccionárias que, sob a tutela dos Estados Unidos, tomaram ilegal e violentamente o poder, causando mais de um milhar de mortos, não tardaram muito a afirmar que o povo chileno estava farto da liberdade política. Por isso, vai de lhe oferecer a ditadura dos monopólios que o presidente sempre combatera e acabaria por o derrubar.
Sobre esse homem notável alguém disse: foi um político honesto, um marxista convicto e um homem integralmente bondoso.
Que o seu exemplo e os seus erros sirvam a todos os que se batem pela felicidade e libertação dos povos.

A vi(o)la da loucura

Praguejante a viola ouvir-se-ia em toda a vila contando da tensão das vidas dos que nela se empenhavam (e não eram poucos admitindo estarem neles também os que a escutavam) não fossem as conventuais paredes brancas abertas ao meio por quebras que as separavam de outras iguais (vidas) numa simetria rígida que só as consciências de tão desiguais podiam quebrar apesar do empenhamento entendido como meio de chacota, libertação, frustração…
Viola, ó vila, ouvi-la.
Os corpos, sequestrados e doridos, lançavam para o ar o que no passado aprenderam por no presente o interesse ser reduzido, testemunho da sua aversão às novidades oferecidas as quais contudo os dominavam numa inutilidade só aparente para alguns e bem real para todos os outros que eram os que lá estavam por conta desses, violando na vila sem ouvi-la, lá onde as paredes eram mais grossas e vigiadas por gendarmes cuja missão era não deixar entrar ou sair sem todos os preceitos bem dedilhados agora em cordas que não se partiriam a não ser por revoltosos e vitoriosos.
Não há machado que corte
a raiz ao pensamento
porque é livre como o vento
porque é livre…
Libertas, as vozes conduziam sonâmbulos para mundos bem diferentes cujos povos eram a antítese daquilo que eles eram, povos que paz-avam, onde a rádio quase diariamente diria "Rebentou a paz" e as crianças brincariam não com pistolas e tanques mas trocando frases de amor que, num Natal que só não se comemorava a 25 do 12, os pais lhes ofereceriam.
Tristes viram então: só rebenta a paz onde haja a guerra.
E a minha voz bem real trouxe-os ao momento que todos queríamos abandonar: "está na hora".
Fomos em direcção ao presente.

O charlatão da feira nova

o charlatão chegou à cidade com os mesmos produtos rótulos diferentes tentando impingi-los mais uma vez ao povo que estava farto deles mas sempre que o via subir para cima duma banca se aglomerava em seu torno dando aso a que ele tecesse todo o elogio que a sua mente de crocodilo habilmente preparara ao longo de tantas sessões de treino de que aquela era mais uma elogio que tinha o condão de tocar os pontos vitais integrantes do desejo e você leva mais uma pelo mesmo preço da anterior além do sabonete aqui tem a esferográfica não costuma escrever a namorada (?) agora vejam este magnífico detector de bombas que os árabes mandam em cartas aos judeus tenham cuidado pois podem ter tido um parente judeu e os agressores árabes não perdoam como o prova o dayan ter um olho tapado e o henrique não sei quantos ter sido assassinado por um fanático- vocês levam ainda um magnifico televisor para assistir aos belos filmes que a televisão dá toda impregnada de teatro popular música popular anúncios populares os meus produtos são muito melhores que os que ela anuncia não preciso de um teleganhando para os meter na cabeça de quem me ouve e se alguém houver que queira reclamar pois eu devolvo todo o dinheiro o senhor está aí a fazer barulho tome lá todo o seu dinheiro leve tudo o que lhe dei para casa - e em voz baixa os patos estão a cair - já tenho todos os produtos vendidos mas na próxima feira trago mais muitos mais para este povo maravilhoso que tão bem me soube receber mais uma vez.

O encontro

na cidade reuniram-se industriais bairristas cidadãs aenepistas oposicionistas camponeses campistas a erretêpê charlatões latifundiários poetas reaccionários reformistas revolucionários capas para dar às suas vidas um bocado de interesse que andava muito por baixo dados os maus programas que a televisão transmitia para povo ver o qual faltou ao encontro mas mandou alguns representantes os que tinham mais interesse em representar o povo feito de trabalhadores embebidos em emplastre de álcool e inconsciência que fez do encontro um falhanço espectacular pois cada um foi para o café que já conhecia trancou-o com cilindros de ferro e não deixou entrar mais ninguém a não ser no final tal e qual no género dos banquetes que se fazem e cujas receitas são destinadas aos pobres os quais no entanto não ficam com a pança cheia que isto de ser poeta com a pança vazia não dá nada e a cabeça ficava fraquinha sem poder pensar em novas lucubrações e em novos banquetes que a televisão transmitiria para abrir o apetite aos que em casa só tinham côdeas mas na etiópia nem isso tinham pois só numa semana morreram 10.000 ficando durante dias às moscas algum tempo depois de os estados unidos e união soviética terem vendido mais uns quilos de armas a árabes e judeus que se fartaram de matar-se mutuamente enquanto os outros se riam como uns perdidos consolidando as suas posições junto aos poços de petróleo os desinteressados os tais da paz mundial e da redução das armas nucleares.

Queda no abismo

A folha de papel totalmente em branco, num branco que se destruía enquanto a preenchia, recordava-me as palavras de Zaratustra que ontem li e me disseram «o homem é um abismo entre o macaco e o super-homem».
Também ela era um abismo dada a incapacidade para exprimir qualquer coisa, um abismo no qual se afundam ideias muitas vezes condenadas ao es-quecimento por parte daqueles a quem se dirigem se bem que em determina-do momento se possam considerar agressivas e avisem «cuidado com o fogo» pois a avó é uma instituição que quase desapareceu do seio da família.
Na sexta-feira estive com uma avó e com o ente que lhe dava sentido, brinquei, ouvi-os «que estás a fazer?», «um cão», «não há cães encarnados», «mas os índios são encarnados, «os índios não são cães», «mas há cães índios'.
Não fosse a prevenção da avó e o mas bem explícito da criança e eu julgar-me-ia regressado da colonização americana, onde os direitos dos povos Índios foram sempre espezinhados numa eficácia de tal ordem que hoje se podem considerar como desaparecidos na totalidade à parte os que se disfarçam para turista ver ou para a erretêpê transmitir sem o mínimo respeito pela verdade da sua história.
Para todos nós o super-homem ainda está demasiado longe.

Os abutres

estavam por trás do muro oferecendo o que tinham para vender numa ânsia que lhes arregalava os olhos não os deixando pensar em porque estariam ali onde seres esfomeados e necessitados de humanidade procuravam pão e algo como o leite materno para se alimentarem e continuarem numa senda repetitiva que faria voltar os abutres já que o negocio era fabuloso e eles teriam assim forma de encontrar na cidade os géneros que necessitavam para a sua auto-subsistência muito embora maldissessem os impostos que pagavam percebendo que eram para obras colectivas e não das prontas só para eles seres cujos filhos também iam a escola talvez de má vontade ansiando pela liberdade de se tornarem úteis e servirem um povo sofredor e amante do trabalho produtivo para assim poderem estar participando na repartição do bolo.
eram dez minutos e o seu decorrer cheio de palavrões e boca cheia saltitando de vala em vala do muro para ali dali para o muro onde estavam os pães as bebidas e tudo o mais que o esfomeado consumiria pensando estar a fazer algo pelo seu corpo para desenvolver uma formidável musculatura enquanto os olhos arregalados e as vozes li-vres os procuravam numa confluência. de fins que se materializava no exposto.
o dinheiro brilhou e à falta de trocos uma carteira de fósforos serve para aumentar o negócio.
o abutre tinha na realidade algo de estranho.

O castelo dos sonhadores

Com mais EoIo menos Hades, mais escaravelho menos abelha, os nossos cronistas provincianos vão desviando as atenções do povo ouriense para os restos de umas muralhas sitas na antiga vila.
É lastimável!
Pois será esse o único problema que afecta (?) os trabalhadores da nossa terra e havendo outros será ele prioritário?
Sinceramente, estão a tomar-se enfadonhos. Por acaso ainda não viram que as "entidades competentes" a quem esmolam ajudas ou medidas se estão nas tintas?
Não viram o fluxo emigratório?
Não viram o abandono dos campos?
Não viram o atraso industrial?
Não viram a necessidade de cooperativas?
Não viram a exploração da criança?
A escravização da mulher...
As cadeias dos trabalhadores...
O racismo nos Estados Unidos...
A transição para o socialismo!
Não viram nada, mesmo nada?
Por favor, senhores sonhadores, acordem. De contrário, enquanto vão vociferando sobre o castelo, o mundo ultrapassa-os e só lhes resta um tiro nos miolos.

Coisas do nosso tempo...

Enquanto houver dois homens, terá de haver opositores, visões diferentes, caminhos diferentes... e tantas, tantas diferenças e critérios, quantos os homens, afinal de contas.
E não vamos condenar nem pretos nem brancos, nem gregos nem troianos, já para respeitar direitos que todos têm, apenas sujeitos às normas duma ética justa, já para podermos admirar a policromia humana, cujos tons inspiram poetas e sonhadores.
Pois é verdade, «UM OURIENSE» admite ser apelidado de «sonhador dos castelos», e confessa que felizmente não é o castelo de Ourém, nem problema e muito menos o único problema deste concelho, como também admite e verifica com tristeza que não é com duas penadas que alguém se arvora em salvador ou mentor infalível dos destinos dum concelho.
Já sabemos que para os europeus os africanos são pretos e, vice-versa, para os africanos os europeus são brancos; mas também sabemos que cada um é o que é e tem valor no seu ser, relativo sim, mas real. Ambos vêem, ambos sentem, e ambos reagem a seu modo, mas validamente. Provincianos ou alfacinhas, serranos ou campesinos, todos têm direito a sentir, a amar e a sonhar. Uns sonham com castelos e outros fazem castelos no ar; uns sonham com as grandezas do passado e outros com as utopias do futuro.
Uma coisa, porém, é certa, em todos os tempos e hoje mais que nunca, e em todos os lugares sempre os homens, na impossibilidade talvez de ver o futuro, se voltam para o passado, admiram as suas obras e guardam ciosos os seus valores. Na sua ânsia de desvendar o passado percorreu-se séculos já vividos, recua-se em anos aos milhares e até aos milhões, revolve-se a terra, põem-se a descoberto ossadas, túmulos, grandes necrópoles, cidades e civilizações, joeiram-se poeiras, entulhos, enriquece-se a história e a ciência, e não vamos condenar tais iniciativas porque há doenças a tratar, caminhos a abrir, escolas a construir e crianças a educar, ou porque há correntes a enfrentar, ventos a soprar em rajadas ciclónicas ou em pachorrentas brisas, ou ainda porque há couves a plantar!
Não, caro amigo! Não! As pedras sagradas do nosso castelo de Ourém, as suas torres altaneiras e os seus pergaminhos da mais antiga nobreza, nem impedem a marcha ao progresso do nosso concelho, talvez pelo contrário a ajudem, nem tiram a importância aos problemas que afectam os nossos tempos, e nem os resolvem ou impedem a sua solução.
Que tem que ver o nosso desprezado e pacato castelo com o racismo dos Estados Unidos ou com os socialismos coloridos dos nossos dias? Ou, que relação e influência teria esse vetusto castelo, reparado ou par reparar, no fenómeno universal das migrações, na montagem dos grandes impérios comerciais ou industriais, ou no abandono dos campos que hoje se processa?
Apenas parece que o desprezo votado ao castelo de Ourém prefigura o abandono dos vastos campos que o rodeiam, desde o extremo norte da Freixianda ao fundo Sul da Serra de Aire.
Então a exploração da criança - digamos antes matança tão criminosa como generalizada e até legalizada em tantas paragens, ditas progressivas, do mundo, e a escravização da mulher - digamos antes destruição do seu destino e dos seus valores femininos que a própria natureza, pródiga como o seu Criador, lhe conferiu, - são problemas, são males que se remediariam, se o castelo de Ourém, não fosse restaurado?
Se é o caso, provem-no, que eu sou o primeiro a pegar na picareta e a desfazê-lo pela raiz, apesar de sonhar com castelos, cujas muralhas se situam na «antiga Vila».
Para tanto não são precisos «tiros nos miolos», pois o Castelo, pobre e velho, nem já miolos tem. Tiros, sim! Eles que venham para acordar e fazer surgir quem jaz na sombra da morte: o castelo e aqueles que o mataram ou não querem que ressuscite.
Se quem não ama permanece na morte, e a palavra é inspirada, parece que permanecem na morte os ourienses que não amam o seu castelo; por isso precisam de acordar. Tiros que acordem, é que são precisos. Que façam ressuscitar o que está sepultado há séculos e que enriqueceria o presente de hoje e o de amanhã. Esses que são precisos! Que venham.
UM OURIENSE

O meu postigo

Por Alberto Pinheiro
Dois artigos publicados no "Notícias de Ourém"1 "o crime do Castelo de Aurém" e "o Castelo dos Sonhadores", posso entendê-los como discordantes da análise histórica respeitante a Ourém que costumo fazer, na imprensa local. O primeiro não merece qualquer apreciação dada a sua forma irónica e descabida de comentar o assunto, mas o segundo, confesso, presto-lhe atenção dada a franqueza da opinião exposta e a simpatia que me merecem as pessoas que aparecem cara a cara a dizer o que pensam, pois essa atitude os concilia com a minha maneira de ser.
As considerações que vou expor não se dirigem exclusivamente ao autor do artigo em referencia.
Existem também aquelas pessoas que são de opinião diferente e me têm felicitado por eu diligenciar expurgar da história de Ourém, as lendas, as confusões e os erros de que está inquinada.
Tenho muita admiração pelos jovens com personalidade e que consoante as suas ideologias lutam pelo futuro que melhor satisfaça os anseios de valorização das suas qualidades e virtudes sem condicionalismos que molestem a sua dignidade.
Creio que não existem sociedades perfeitas mas é certamente possível, limar arestas para que as desiguladades sociais não sejam tão chocantes como as que a cada passo se observam, e tendem a desenvolver-se em ambiente favorável.
Sigo os seus passos, embora um pouco atrasado.
A minha idade não me permite acompanhar a rapidez da sua marcha.
Mas não adormeci nem me deixei ultrapassar pela marcha do tempo, não corro portanto o risco de ter de "dar um tiro nos miolos".
Já um dia, num dos meus artigos sobre o Castelo de Ourém, esclareci que quando olhava aquele monte e aquele Castelo, o admirava como um símbolo de grandeza e como berço do concelho, ou antes, dum condado, que foi dos mais importantes e cobiçados do país.
O Castelo de Ourem para mim não é só um monumento histórico é também uma testemunha de acusação para os Ourienses que têm administrado o concelho e orientado o seu desenvolvimento, e lentamente o deixaram chegar à apagada de vil tristeza dos dias de hoje que por todo o lado se lamenta.
Houve desenvolvimento económico? Certamente que sim, mas, mais por iniciativa particular do que por diligência das autarquias locais.
Não veja pois o articulista que me critica qualquer adesão da minha parte com a organização social da época medieval.
Não posso à distância ver em pormenor ou analisar com segurança Os problemas Ourienses e não devo portanto criticá-los, sem me sujeitar a ser injusto: A critica tem de ser serena fria e objectiva.
Envolvo quase sempre as pessoas que por negligência incapacidade ou muitas outras razões, não procederam como em nossa opinião deviam ter procedido.
Essa crítica para ser honesta e construtiva tem de alicerçar-se em factos devidamente comprovados. Fazer o contrário é ofender a dignidade das pessoas comprometidas e a própria dignidade do crítico.
Para aqueles que vivem mais perto dos factos e os conhecem na verdadeira dimensão, é mais fácil apreciá-los e discuti-los apresentando mesmo sugestões válidas que contribuam para uma concretização satisfatória.
A noção da responsabilidade aliada ao bom senso leva-me na apreciação histórica do concelho dentro das minhas possibilidades, e mesmo a procurar abordar apenas os assuntos para que me julgo preparado e de bom grado aceito que me digam que estou errado e me demonstrem porque.
Agradar a todos creio não ser possível, nem aos génios, e não haverá portanto razão para me sentar à beira da estrada. Irei seguindo o meu caminho;

Lisboa, 25 de Outubro de 1975,